Uma saudação cordial a todos os senhores aqui presentes. Desejo iniciar apresentando-lhes o motivo de refletirmos juntos sobre o Ministério a partir das palavras que o Santo Padre, o Papa Francisco, delineou na sua Carta aos Sacerdotes, por ocasião do 100º (centésimo) aniversário da morte do Santo Cura d’Ars, no dia 4 de agosto de 2019.
Essa carta foi dirigida a todos os sacerdotes que, sem fazer alarde “deixam tudo”, que como o Cura d’Ars, labutam nas “trincheiras”, suportam o peso do dia e do calor e, sujeitos a uma infinidade de situações, enfrentam-nas diariamente, e sem se darem ares de importância para que o povo de Deus seja cuidado e acompanhado, que assumem a missão como um serviço a Deus e ao seu povo e, mesmo com todas as dificuldades do caminho, escrevem as mais belas páginas da vida sacerdotal nestes tempos difíceis.
1.- Tribulação
Nos últimos tempos, pudemos ouvir mais claramente o clamor – muitas vezes silencioso e silenciado – de irmãos nossos, vítimas de desordem morais por parte de ministros ordenados. É um período de sofrimento na vida das vítimas, para as suas famílias e para todo o Povo de Deus.
A Igreja está firmemente empenhada na atuação das reformas necessárias para promover, a partir da raiz, uma cultura baseada no cuidado pastoral, de tal forma que a cultura da desordem não consiga encontrar espaço para desenvolver-se e, menos ainda, perpetuar-se.
Não é tarefa fácil nem de curto prazo; requer o empenho de todos. Hoje, a Mãe Igreja quer que a conversão, a transparência, a sinceridade e a solidariedade com as vítimas se tornem nossa maneira de fazer a história e nos ajudem a estar mais atentos a todos os sofrimentos humanos.
E esta tribulação não deixa indiferentes os presbíteros que, além do «desgaste pela entrega, experimentaram o dano que provoca a suspeita e a contestação, que pode ter insinuado – em alguns ou muitos – a dúvida, o medo e a difidência». Por outro lado, consola encontrar clérigos que, ao constatar e conhecer o sofrimento das vítimas e do Povo de Deus, se mobilizam, procuram palavras e percursos de esperança.
Seria injusto não reconhecer que tantos sacerdotes, de maneira constante e íntegra, oferecem tudo o que são e têm pelo bem dos outros e vivem uma íntegra e rica paternidade espiritual, que fazem da sua vida uma obra de misericórdia em regiões ou situações frequentemente inóspitas, remotas ou abandonadas, mesmo arriscando a própria vida. Em momentos de turbulência, vergonha e sofrimento, os senhores continuam se entregando com alegria, pelo Evangelho.
Na medida em que formos fiéis à vontade de Deus, os tempos da purificação eclesial que estamos vivendo nos tornarão mais alegres e simples e, num futuro não muito distante, serão muito fecundos. «Não desanimemos! O Senhor está purificando a sua Esposa e, a todos, está nos convertendo a Ele. Permite-nos experimentar a provação, para compreendermos que, sem Ele, somos pó. Está salvando-nos da hipocrisia e da espiritualidade das aparências. Hoje far-nos-á bem ler o capítulo 16 de Ezequiel. Aquela é a história da Igreja. Aquela – poderá dizer cada um de nós – é a minha história. E no final, através da sua vergonha, continuará sendo um pastor.
2.- Gratidão
A vocação é resposta a uma chamada gratuita do Senhor. Sempre, mas sobretudo nas provações, devemos voltar àqueles momentos luminosos em que experimentamos a chamada do Senhor para consagrar toda a nossa vida ao seu serviço. O Papa Francisco disse: a memória deuteronômica da vocação, nos permite retornar àquele ponto incandescente em que a graça de Deus me tocou no início do caminho, e com aquela centelha, posso acender o fogo para o dia de hoje, para cada dia, e levar calor e luz aos meus irmãos e às minhas irmãs.
Um dia pronunciamos um «sim» que nasceu e cresceu no seio de uma comunidade cristã. Um «sim», cujo alcance teve e terá uma transcendência insuspeitada, não conseguindo muitas vezes imaginar todo o bem que foi e é capaz de gerar.
Em momentos de dificuldade, fragilidade, bem como de fraqueza e manifestação dos nossos limites, quando a pior de todas as tentações é ficar ruminando a desolação, fragmentando o olhar, o juízo e o coração, nesses momentos é importante, é crucial – não só não perder a memória agradecida da passagem do Senhor pela nossa vida, a memória do seu olhar misericordioso que nos convidou a apostar n’Ele e no seu Povo, mas também animar-se a colocá-la em prática.
A gratidão é sempre uma «arma poderosa». Só se formos capazes de contemplar e agradecer concretamente todos os gestos de amor, generosidade, solidariedade e confiança, bem como de perdão, paciência, suportação e compaixão com que fomos tratados, é que deixaremos o Espírito obsequiar-nos com aquele ar puro capaz de renovar a nossa vida e missão. Deixemos que a constatação de tanto bem recebido faça despertar em nós a capacidade de deslumbramento e gratidão.
A fidelidade aos compromissos assumidos: numa sociedade e numa cultura que transformou o «gasoso» em valor, é verdadeiramente significativa a existência de pessoas que apostem e procurem assumir compromissos que exigem toda a vida. Continuamos acreditando em Deus que nunca quebrou a sua aliança, mesmo quando nós a quebramos inúmeras vezes. Isto convida-nos a celebrar a fidelidade de Deus que não deixa de confiar, crer e apostar em nós, e convida-nos a fazer o mesmo.
A alegria em entregar a vida, mostrando um coração que, ao longo dos anos, lutou e luta para não se tornar mesquinho e amargo, ao contrário, deixa-se ampliar, diariamente, pelo amor de Deus e do seu povo.
Reforçar os vínculos de fraternidade e amizade no presbitério e com o bispo, apoiando-se mutuamente, cuidando de quem está doente, procurando aquele que se isola, encorajando e aprendendo a sabedoria do idoso, partilhando os bens, sabendo viver juntos.
Perseverança e suportação (hypomoné) na dedicação pastoral, que frequentemente, movidos pela ousadia (parresía) do pastor, nos levam a lutar com o Senhor na oração, como Moisés.
Celebrar diariamente a Eucaristia e apascentar com misericórdia no sacramento da Reconciliação, sem rigorismos nem laxismos, ocupando-se das pessoas e acompanhando-as no caminho da conversão à vida nova.
Ungir e anunciar a todos, com ardor, «em tempo propício e fora dele» (2Tm 4, 2), o Evangelho de Jesus Cristo, sondando o coração da própria comunidade «para identificar onde está vivo e ardente o desejo de Deus e também, onde foi que este diálogo de amor foi sufocado ou não pôde dar fruto».
Demos graças também pela santidade do Povo fiel de Deus, que somos convidados a apascentar e através do qual também o Senhor nos apascenta e cuida de nós com a graça de poder contemplar este povo. Agradeçamos e deixemo-nos ajudar e estimular pelo seu testemunho.
3.- Ardor
A renovação do nosso ardor sacerdotal, fruto sobretudo da ação do Espírito Santo em nossas vidas. A missão a que fomos chamados não comporta ser imunes ao sofrimento, à dor e até à incompreensão. Um bom «teste» para saber como está o nosso coração de pastor é perguntar-se como enfrentamos a dor.
Muitas vezes, pode acontecer de comportar-se como o levita ou o sacerdote da parábola que passam do lado oposto e ignoram o homem que jaz por terra. Longe de fazer com que as nossas entranhas se comovam, acabam por nos afastar das feridas próprias, das dos outros e, consequentemente, das feridas de Jesus. Nesta mesma linha, outra postura sútil e perigosa que é «o mais precioso dos elixires do demônio» e a mais nociva para quem deseja servir o Senhor, porque semeia desânimo, orfandade e leva ao desespero. Desiludidos com a realidade, com a Igreja ou conosco mesmos, podemos cair na tentação de nos apegarmos a uma tristeza adocicada que os padres do Oriente chamavam de acídia. O cardeal Tomás Spidlik dizia: «Se nos assalta a tristeza pelo que a vida é, pela companhia dos outros, porque estamos sozinhos (…), então é porque temos falta de fé na Providência de Deus e na sua obra (…). A tristeza paralisa o ardor de continuar com o trabalho e com a oração, torna-nos antipáticos àqueles que vivem ao nosso lado. (…) Os monges, que dedicam uma longa descrição a este vício, chamam-no o pior inimigo da vida espiritual».
Conhecemos esta tristeza que leva a habituar-se, e pouco a pouco faz-nos ver como natural o mal e a injustiça, sussurrando tenuemente «sempre se fez assim». Tristeza, que torna estéril todas as tentativas de transformação e conversão, espalhando ressentimento e aversão.
Peçamos, e façamos pedir ao Espírito que «venha despertar-nos, dar-nos uma sacudida na nossa sonolência, libertar-nos da inércia. Desafiemos o hábito, abramos bem os olhos, os ouvidos e sobretudo o coração, para nos deixarmos mover pelo que acontece ao nosso redor e pelo clamor da Palavra viva e eficaz do Ressuscitado». Assim, poderemos cumprir a missão que o Senhor nos dá cada manhã: transmitir uma boa nova, «uma grande alegria, que o será para todo o povo». Mas não como teoria, como conhecimento intelectual ou moral do que deveria ser, mas como homens que, no meio da tribulação, foram transformados e transfigurados pelo Senhor.
Sabemos que Deus, independentemente das nossas fragilidades e pecados, sempre «nos permite levantar a cabeça e recomeçar, com uma ternura que nunca nos defrauda e sempre pode nos restituir a alegria». Esta alegria não nasce dos nossos esforços voluntariosos ou intelectualistas, mas da confiança de saber que continuam eficazes as palavras de Jesus a Pedro: no momento em que fores humilhado, não te esqueças de que «Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça» (Lc 22, 32). O Senhor é o primeiro que reza e luta por ti e por mim. Somos discípulos necessitados do auxílio do Senhor, que nos liberta da tendência prometeica «de quem, no fundo, só confia nas suas próprias forças ».
A oração do pastor é uma oração habitada tanto pelo Espírito «que clama: “Abbá! – Pai!”» (Gal 4, 6) como pelo povo que lhe foi confiado. A nossa missão e identidade compreendem-se a partir desta dúplice ligação.
A oração do pastor nutre-se e encarna-se no coração do Povo de Deus. Traz as marcas das feridas e alegrias do seu povo, apresentando-as em oração silenciosa ao Senhor para que as unja com o dom do Espírito Santo. É a esperança do pastor que confia e luta para que o Senhor cure a nossa fragilidade, tanto a pessoal como a das nossas comunidades. Mas não percamos de vista que é precisamente na oração do Povo de Deus, que o coração do pastor se encarna e encontra o seu lugar. Isto preserva-nos a todos de procurar ou querer respostas fáceis, rápidas e pré-fabricadas, permitindo ao Senhor ser Ele – e não as nossas receitas e prioridades – a mostrar-nos um caminho de esperança.
Para manter o coração animado, é necessário não negligenciar estes dois vínculos constitutivos da nossa identidade: com Jesus e com o nosso povo. O primeiro vínculo: sempre que nos desligamos de Jesus ou negligenciamos a nossa relação com Ele, pouco a pouco a nossa dedicação vai-se atenuando e as nossas lâmpadas ficam sem o azeite.
Não negligenciar o acompanhamento espiritual, tendo um irmão com quem falar, confrontar-se, debater e discernir, com plena confiança e transparência, a propósito do próprio caminho; um irmão sábio, com quem fazer a experiência de se saber discípulo. Procurem, encontrem e gozem a alegria de se deixarem cuidar, acompanhar e aconselhar por ele. É uma ajuda insubstituível para poder viver o ministério, fazendo a vontade do Pai (cf. Heb 10, 9). Fazem-nos bem estas palavras de Qohélet: «É melhor dois do que um só (…). Se caírem, um levanta o outro. Mas aí do solitário que cai: não tem outro para o levantar» (4, 9-10).
Fortaleçam e alimentem o vínculo com o povo, não se isolem do povo nem dos presbitérios ou das comunidades. E ainda… não se fechem em grupos exclusivos e elitistas. Isto, no fim, asfixia e envenena o espírito. Um ministro ardoroso é um ministro sempre em saída; e «estar em saída» nos leva a caminhar «por vezes à frente, por vezes no meio e outras vezes, atrás: à frente, para guiar a comunidade; no meio, para melhor compreendê-la animar e sustentar; atrás, para mantê-la unida, a fim de que ninguém chegue tarde demais, (…) e também por outro motivo, ou seja, porque o povo tem intuito! Tem intuito para encontrar novos atalhos para o caminho, tem o sensus fidei (cf. LG 12). Poderá existir algo de mais bonito?». O próprio Jesus é modelo desta opção evangelizadora, que nos introduz no coração do povo. É belo para nós vê-Lo próximo de todos. A entrega de Jesus na cruz é apenas o ponto culminante deste estilo evangelizador que marcou toda a sua existência.
Irmãos, o sofrimento de tantas vítimas, o sofrimento do Povo de Deus e nosso também, não pode ser em vão. É o próprio Jesus que carrega todo este peso na sua cruz e nos convida a renovar a nossa missão de estar perto dos que sofrem, de nos aproximarmos sem vergonha das misérias humanas e – por que não? – vivê-las como se fossem próprias para torná-las eucaristia.
O nosso tempo, marcado por velhas e novas feridas, precisa que sejamos artesãos de relação e comunhão, abertos, confiados e esperançosos da novidade que o Reino de Deus quer suscitar hoje; um Reino de pecadores perdoados, convidados a testemunhar a compaixão sempre viva e ativa do Senhor; «porque é eterna a sua misericórdia».
4.- Louvor
Maria nos ensina o louvor capaz de abrir o nosso olhar para o futuro e devolver a esperança ao presente. Toda a sua vida foi condensada no seu cântico de louvor. Contemplar Maria é voltar «a acreditar na força revolucionária da ternura e do afeto. N’Ela, vemos que a humildade e a ternura não são virtudes dos fracos, mas dos fortes.
Se alguma vez o olhar começar a esmorecer ou sentirmos a sedução da apatia ou da desolação, se alguma vez nos sentirmos tentados a nos isolar e nos fechar em nós mesmos e nos nossos projetos, protegendo-nos dos caminhos sempre poeirentos da história, ou se a queixa, a crítica ou a ironia tomam conta das nossas ações sem querer lutar, esperar e amar, olhemos para Maria a fim de limpar os nossos olhos de toda «palha» que nos possa impedir de estarmos atentos e despertos para contemplar e celebrar a Cristo.
Ela «é a amiga sempre solícita para que não falte o vinho na nossa vida. É aquela que tem o coração trespassado pela espada, que compreende todas as penas. Como Mãe de todos, é sinal de esperança…. Como uma verdadeira mãe, caminha conosco, luta conosco e aproxima-nos incessantemente do amor de Deus».
Irmãos, damos graças a Deus pelos senhores, pela dedicação e missão de cada um, com a certeza de que «Deus remove as pedras mais duras, contra as quais se quebram as esperanças e as expetativas: a morte, o pecado, o medo, a mundanidade.
Que a gratidão dê lugar ao louvor e nos anime uma vez mais, na nossa missão de ungir os nossos irmãos e irmãs na esperança; que nos anime a sermos homens que testemunham com a vida, a compaixão e a misericórdia que só Jesus nos pode dar.
Dom Giambattista Diquatro – Núncio Apostólico